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Me dê um abraço, venha me apertar, tô chegando...

  Ela estava prestes a chegar, mas Maria José não poderia nem imaginar.

  Essa história começa a ser traçada na pequena cidade de Cruzeiro, localizada no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. Deu-se início em meados do ano de 1985, na família dos Guedes Mendes. Família essa que morava em um bairro humilde chamado Vila Batista; numa casa simples, de chão de cera vermelha, com poucos cômodos. Além do quarto dos pais, havia outro dividido entre a avó e as duas meninas. O filho mais velho dormia em um colchão na sala de estar que, por sinal, era tão espaçosa que daria para dividi-la em dois cômodos. Na cozinha, as louças mais bonitas eram enfeites. Não havia muito luxo, mas era um lar aconchegante.

   Quando foi diagnosticada com diabetes, Maria José se encontrava sempre debilitada. Suas idas ao hospital eram feitas às pressas e com frequência. Aquilo era preocupante, o uso de insulina era em grande quantidade. Como não havia mais nenhuma alternativa médica para estabilizar o quadro de saúde em que se encontrava, a costureira resolveu recorrer a sua crença. Como boa devota de Nossa Senhora Aparecida, Maria José fez uma promessa. “Ela pediu a Nossa Senhora que a tirasse daquelas crises que tinha, onde ficava muito internada, passando mal, tomando insulina, enfim... Se Nossa Senhora Aparecida intercedesse por ela, como retribuição adotaria uma criança”, relembra Tina, a filha mais nova.

  Evandro Sávio, o primogênito, conta que a mãe acreditava que uma criança seria boa para ela naquele momento. “Nós (os filhos) já estávamos ‘adultos’, vamos dizer assim. Aí ela achou por bem adotar, mas eu me lembro que ela não queria uma criança já com idade, ela pensou em um recém-nascido (...) o motivo foi para não ficar tão sozinha porque cada um já estava seguindo seu caminho. Ela queria uma companhia”, relembra.

   Prometeu, tem que cumprir!

   Com o passar do tempo, finalmente o pedido de Maria José foi atendido. A diabetes se estabilizou, já não havia mais aquela correria entre casa e hospital. A família era muito unida. Eles costumavam assistir aos programas de TV juntos, e durante as refeições todos sentavam na mesa para comer. Foi em um momento como esses que Maria José anunciou sua promessa feita. Os filhos concordaram, nenhum dos três relutaram contra a vontade da mãe, pelo contrário, até gostaram da ideia de ter um bebê em casa. No início, dona Almira e Victor não concordaram muito com a ideia, mesmo sendo fiéis à crença, a preocupação era maior. O problema não era ter mais um membro na família, mas sim nas condições em que Maria José se encontrava. Como ela iria conseguir cuidar de um bebê em um momento em que a própria precisava de cuidados? Mas ela, com a personalidade forte que tinha, e principalmente sua devoção na chamada “santa do povo”, não deu ouvidos... Ainda bem!

  Sem perder tempo, a costureira começou a ir em busca de sua promessa e antes mesmo de encontrar, já comprou um berço para esperar o seu bebê.

   A família era bastante conhecida no bairro, não demorou muito e a notícia de que Maria procurava um bebê para adotar já estava na boca do povo e todos começaram a ajudar a procurar alguém que doaria uma criança. A vizinha tinha uma filha, e as roupas que já não serviam mais na criança foram doadas para Maria, mesmo sem saber qual seria o sexo do bebê que adotaria. Afinal de contas, ela não tinha preferência.

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   Naquela época, não havia tanta burocracia para adotar uma criança, mas isso não significa que foi fácil. Pelo contrário. Um dia, a costureira ficou sabendo que havia uma criança abandonada no hospital e, mais do que depressa, foi atrás de informações. Chegando lá, o desejo de Maria José aumentou quando disseram que os procedimentos seriam feitos para ela adotar, mas, passados alguns dias, ela recebeu a notícia de que aquele bebê teria sido pego por um membro da família da criança e, por isso, não foi para a adoção.

   Depois, outra notícia. Uma jovem estava grávida e o pai a colocou para fora de casa e, por conta disso, iria doar a criança. Maria José, mais uma vez, foi atrás e a mulher confirmou que daria seu bebê para ela. Expectativa foi criada novamente. Passados alguns meses, já no final da gestação, a jovem deu a notícia de que teria feito as pazes com a família e desistiu de doar seu filho.

   Esses fatos não foram capazes de fazê-la desistir de sua promessa. O desanimo, é claro, tomou conta. As expectativas diminuíram e não somente a de Maria, mas, sim, de toda sua família. Para ela, que era fiel e temente a Deus, sabia que o que restava era esperar e confiar n’Ele.

  Olga era manicure na época. “Uma cliente me falou que uma amiga da filha dela ia deixar a criança para adoção”, relembra a filha do meio. A cliente era moradora do bairro e se chamava Lúcia. Maria José a procurou e ela confirmou a boa nova. Uma amiga estava grávida e à procura de uma família para doar sua bebê. Seu nome era Roseli. Uma mulher humilde, negra, desempregada e mãe solteira de Meirielen e Marciellen. Grávida da terceira filha, não poderia criar sua caçula devido a sua condição financeira e problemas familiares.

  “Aí a Lúcia contou que a Roseli era casada, se separou do marido, mas ele ainda ajudava ela porque ela tinha duas crianças pequenas. Financeiramente, ele ainda ajudava com as meninas. Só que ela engravidou e ele falou que, além de não ajudar ela com a criança que ia nascer, ia tirar a ajuda que dava para as outras, então ela ia ter que se virar sozinha e cuidar de três. Ela entrou em desespero, porque se ela não tinha nem para duas, como ia ter para três? Ela entrou em pânico, entendeu? Foi onde ela decidiu doar”, relembra Tina.

   Maria José se interessou e Lúcia a levou para conhecer Roseli. Teresa Cristina conta que se lembra de ter ido junto com a mãe. Chegando lá, Roseli estava com um vestido longo e um barrigão, junto com as duas meninas pequenas, à espera de Maria José.

   Roseli contou a Maria José sua história, exatamente como Lúcia já havia falado. Deixou bem claro que não tinha condição alguma de criar mais uma criança, e que, além disso, preocupava-se em não poder continuar dando às duas meninas o que elas necessitavam. Suas filhas, mesmo muito pequenas, já tinham idade para frequentar, por exemplo, uma creche. Mas, naquela época, até vaga era difícil de conseguir. Parece que tudo acabava dificultando a situação de Roseli.

   Maria José disse a Roseli o motivo pelo qual queria adotar uma criança. Contou

roseli e filhas
Da esquerda para direita: Roseli, Marciellen e Meirielen

a ela sua promessa e sobre as crianças que tentou adotar, mas que, no final das contas, não conseguiu devido à desistência da mãe biológica e envolvimento de outros membros da família. Foi sincera e firme. Ela se abriu e disse que não gostaria de passar novamente por essa situação e que, a seu ver, era muito delicada, uma vez que toda a família estava na expectativa da chegada da criança. Roseli deu sua palavra. Disse que não iria desistir porque, realmente, não tinha condições para isso.

   Com medo de Roseli não cumprir o combinado, Maria José foi até uma advogada e pediu para que um documento fosse elaborado, afirmando que Roseli doaria a criança para ela. Ambas assinaram o documento. Olga relembra esse momento. “Hoje, sabemos que é muito burocrático, né? Mas, na época, a Dra. Maria das Graças, assistente social do fórum, nos auxiliou muito. Que Deus a abençoe. Talvez se meus pais não tivessem adotado, nem gosto de imaginar o que teria acontecido com ela”, diz.

   Maria José começou, então, a acompanhar a gravidez de Roseli de perto. Toda semana ia visitá-la e sempre levava uma pequena compra feita no supermercado, com o intuito de ajudar Roseli a manter as meninas e não deixar faltar nada a elas.

   Victoriana, quem escolheu esse nome?

   A expectativa para a chegada do bebê era enorme. Todos da casa estavam ansiosos para conhecer o novo membro da família. Mas como iria se chamar?

   Reunidos na sala, como de costume, a família resolveu escolher o nome. Ainda não sabiam se era menino ou menina. Olga pegou um caderno e uma caneta e começou a anotar as sugestões de todos. Na brincadeira, ela sugeriu que homenageassem o pai, Victor, e, se fosse menina, que colocasse então “Victoriana”.

   “Que nome diferente!”; “Que esquisito!”; “Da onde você tirou isso?!”, explanavam.

  Ninguém nunca tinha ouvido falar desse nome. Foi motivo de muitas risadas. Então, Maria José mandou seu recado: “Coloque o nome que vocês quiserem, eu não me importo, mas ‘Aparecida’ tem que ter! Se não tiver ‘Aparecida’, vocês vão se ver comigo. É a minha promessa para Nossa Senhora Aparecida. E, se for menino, tem que ter ‘Aparecido’”.

   A lista de nomes era enorme, tanto de menina quanto de menino. Victor, que costumava ser neutro nessas ocasiões, resolveu se manifestar. “Eu quem vou escolher o nome porque dos três (filhos) eu não pude escolher, foram outros que escolheram. Quando nascer, eu vou registrar e ninguém vai saber”. E Maria José reforçava: “não se esquece de colocar o ‘Aparecida’, senão eu faço você voltar lá”, relembra Tina, dando gargalhadas.

  Quando a bebê nasceu, Victor foi registrá-la. E, ao chegar em casa, todos estavam com muita expectativa para saber qual nome foi escolhido e ele mostra a Certidão de Nascimento: Victoriana Aparecida Guedes Mendes. Não preciso dizer que todos riram, não é? Victor havia gostado da ideia de “inventar” nome e ser homenageado.

   Victoriana nasceu!

A criança serelepe

  Victoriana era o xodó da casa. Todos faziam suas vontades. Ela era uma criança agitada, bagunceira, ardida. Desde pequena, sempre teve uma personalidade marcante. Evandro conta que ela sempre foi muito mimada pelos pais. “A Vick foi tratada com muito mimo, com muita atenção. Mas, lógico, isso não era um problema para mim. E, principalmente nas reuniões de família, que, naquela época, aconteciam muito. Ela era a primeira a ser apresentada, não só no nosso núcleo. A atenção era toda voltada para ela, como qualquer outro bebê que, digamos, fosse filho de sangue, né? Com ela não foi diferente, acho que também nem havia um porquê de ser diferente. Tinha que ser bem acolhida, bem tratada”, relembra Evandro.

Vick 1 ano
Tomados pela emoção, Olga (esquerda, segurando Vick), Maria José e Evandro comemoram o primeiro aniversário de Vick.
Vick aos 5 anos
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 Quando perguntei se esse tipo de tratamento muito “exclusivo” afetou de certa forma o crescimento psíquico e emocional dela, Evandro riu e negou: “Não! Parece engraçado eu falar, mas o crescimento dela afetou o psíquico e emocional nosso, não foi o dela não! (risos). O jeito dela, conforme crescia, aos três anos, quatro anos e tal, era do ‘apá virado’. Ela era muito diferente, era muito ‘espevitada’, louquinha (...) não tinha ninguém que segurava, nossa, o pessoal suava a camisa porque ela deitava e rolava mesmo, em qualquer ocasião”.

   A carta

  Quando Vick completou cinco anos de idade e aprendeu a ler, Maria José decidiu que era a hora de contar para ela sua história de adoção. Mas seria de uma forma diferente. A família teria que escrever uma carta à Vick. Em uma noite, como de costume, a família se reuniu na espaçosa sala de estar e Maria José entregou a carta nas mãos de Vick e pediu para que ela lesse na mesma hora e diante de todos.

  Evandro se perdeu em pensamento para tentar recordar o momento da revelação. Seu olhar paralisado e profundo tentava buscar em sua memória aquilo que foi presenciado por ele, mas não conseguiu se lembrar com detalhes da ocasião em que a carta foi entregue a Vick. Teresa e Olga também não se lembram com detalhes, mas afirmam que este momento existiu e que Vick não teve nenhuma reação preocupante, achou aquilo normal. Quem escreveu a carta foi Olga, enquanto sua mãe ditava o texto. Era uma espécie de mini álbum porque, além do texto, havia algumas fotografias de Vick e sua família, registradas em momentos marcantes. Victoriana se lembra um pouco do momento da revelação.

   “Eu me lembro vagamente dos meus irmãos, não lembro muito da mãe. Eu lembro que me deram algo para ler, eu sei que existiu, vamos dizer assim, esse ‘documento’ escrito por todos eles, para que eu pudesse ler e entender um pouco da minha história quando eu estivesse já interpretando o texto, né?! Eu me lembro vagamente desse momento, mas eu sei que esse momento existiu. Foi na nossa antiga casa, na sala, se não me engano. A sala era muito grande e eu lembro que tinha volume de gente, mas eu não sei especificar. Eu me lembro mais da Tina e da Olga, só”, contou Vick.

  A carta não existe mais. Por ter sido guardada no forro da casa junto com outros papéis e fotografias, com o tempo, se degradou e não restou nada. Mas Vick afirma que isso não importa, o que importa é o que estava escrito e foi gravado em seu coração.

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